O Brasil continua mergulhado nas trevas e demora em adotar medidas eficazes
para contrastar o fenômeno sociossanitário representado pelo crack, cujo
consumo se espalhou pelas cidades brasileiras. Diante desse quadro, com
prefeitos e governadores despreparados, o governo federal anunciou, em
fevereiro deste ano, um acanhadíssimo projeto de centros regionais de
referência, e isso para capacitar 15 mil profissionais de saúde em 12 meses.
O desatino maior deu-se na capital de São Paulo, onde o prefeito Gilberto
Kassab já promoveu, com o auxílio da polícia, a internação compulsória de
usuários frequentadores da Cracolândia, localizada na degradada zona
central. Depois de obrigados a se desintoxicar em postos de saúde, os
dependentes voltaram rapidamente à Cracolândia para novo consumo. Quanto à
polícia paulista, revelou-se incapaz de interromper a rede dos seus
fornecedores de crack.
No momento, Kassab pensa em uma segunda overdose de desumanidade, e o Rio de
Janeiro, com falso discurso humanitário, repete, em essência, a fórmula
piloto do alcaide paulistano, ou seja, internações compulsórias para
desintoxicação. Kassab vem sendo contido pelo secretário para Assuntos
Jurídicos, que parece ter percebido a afronta à liberdade individual,
constitucionalmente garantida.
Como o prefeito sonha com a reurbanização do centro da cidade, os usuários
de crack viram um estorvo para a concretização de sua meta. E quando
colocada a Polícia Militar em ronda permanente pela Cracolândia, os
consumidores, em farrapos, migram para o vizinho bairro de Higienópolis,
tido como aristocrático. Kassab sofre, então, a pressão de uma classe social
privilegiada, que não suporta nem estação de metrô no bairro, por entender
inconveniente a presença dos não residentes. Mais ainda, muitos
higienopolistas reagem, quando topam com um drogado, como a desejar uma
solução tipo Rio Guandu, época do governo Carlos Lacerda no Rio.
Diante das multiplicações das cracolândias, o governo federal tarda em ousar
e partir para a adoção de narcossalas, também chamadas de salas seguras para
consumo. Até o Nobel de Medicina, Françoise Barre Simousse (isolou o vírus
HIV-Aids), preconizou a adoção de narcossalas na França, em face da
resistência do direitista presidente Nicolas Sarkozy, que prefere a cadeia
para os usuários, como FHC e Serra nos seus governos.
A respeito, o Conselho Municipal parisiense tenta derrubar a proibição de
Sarkozy e está pronto para implantar uma narcossala piloto em Paris. Para os
membros das respeitadas e francesas Associação Nacional para a Prevenção do
Álcool e das Dependências (Anpaa) e Associação para a Redução de Riscos
(AFR), a "história epidemiológica e a experiência clínica demonstram que o
projeto de uma sociedade sem consumo de drogas é ilusório. As posturas
proibicionistas e repressivas são inócuas-. Isso porque a cura raramente se
dá apenas com a abstinência". A abstinência, frisaram, causa exclusão. Ou
seja, afasta dos sistemas de proteção e de acompanhamento uma parcela frágil
e frequentemente marginalizada de consumidores- de drogas.
Barre Simousse recomenda a adoção da política de Frankfurt implementada em
1994, ao enfrentar o problema representado por 6 mil drogados que vagavam
pelas ruas. A experiência espalhou-se por outras oito cidades alemãs e
vários países-, como Suíça e Espanha, aderiram aos ambientes fechados de
consumo. Nos EUA, existem salas seguras para uso de metadona, droga
substitutiva à heroína.
Com as narcossalas de Frankfurt, o número de dependentes caiu pela metade
até 2003. Os hospitais e os postos de saúde, antes delas, atendiam 15 casos
graves por dia, com um custo estimado de 350 euros por intervenção.
O sistema alemão de Frankfurt oferece acolhida aos que vivem marginalizados
e em péssimas condições de saúde e econômicas. Sem dúvida, virou uma forma
de aproximação, incluindo cuidados médicos, informações úteis e ofertas de
formação profissional e de trabalho. Nas oito cidades alemãs e entre os
usuários dos programas de narcossalas, caiu o índice de mortalidade em
virtude da melhora da qualidade de vida. -E pesquisas anuais sepultaram a
tese de que as narcossalas poderiam estimular os jovens a ingressar no mundo
das drogas.
As federações do comércio e da indústria alemãs apoiam os programas de
narcossalas com 1 milhão de euros. E ninguém esquece a lição do professor
Uwe Kemmesies, da Universidade- de Frankfurt: "Podemos reconhecer que a
oferta de salas seguras para o consumo de drogas melhorou a expectativa e a
qualidade de vida de muitos toxicodependentes que não desejam ou não
conseguem abandonar as substâncias".
Nenhum comentário:
Postar um comentário